Espero que a minha querid@ Mente Assumida não me leve a mal este atrevimento e "plágio" mas achei que tinha o dever de partilhar esta história, com quem se interesse...
"Planeáramos jantar cedo, num restaurante da praia, com vista directa para o mar. Mudámos de intenções devido a um mal estar que a Clara começara a sentir. Uma ardência no estômago, uma sensação desconfortável. Abandonámos a praia, ela insatisfeita, eu preocupada. O sol brilhava com a intensidade certa, por detrás de uma nuvem, num fim de tarde aprazível. Mas a sensatez obrigava-nos a regressar a casa, para que a Clara pudesse descansar. Ao entrar para o carro, a primeira tontura, que se repetiu, embora com menos intensidade, no elevador e enquanto tomava um duche.Pedi-lhe que se sentasse na cama, enquanto lhe enxugava o corpo e secava os cabelos. Antes de a vestir, verifiquei a temperatura. Trinta e oito graus. Obriguei-a a deitar-se. Muito contrariada, acedeu, repetindo de cinco em cinco minuto que estava bem, que não era nada. Tinha frio. Cobri-a com o edredão, mas continuava a tiritar. Trinta minutos depois, trinta e nove graus. Talvez fosse melhor ir ao hospital, pensei.Pediu-me que ligasse ao Pedro, médico, amigo de longa data. As palavras dele tiveram maior impacto. Conseguiu convencê-la que o melhor era ir ao hospital, porque com base apenas nos sintomas não conseguia arriscar nenhum prognóstico. Vesti-lhe um pólo azul, uns jeans, uns ténis, a camisola vermelha que desenterrei de uma gaveta.À chegada ao hospital, nova tontura. Ainda teve tempo de dizer que lhe apetecia vomitar. Desmaiou enquanto, desesperada, eu respondia às perguntas da administrativa, na recepção. Dois enfermeiros acorreram de imediato, levaram-na para dentro. Tentei acompanhá-la, mas à pergunta: - A senhora quem é?gaguejei:- Uma amiga, ela veio comigo.e a honestidade valeu-me isto como resposta:- Não pode entrar. Só a família. Não se preocupe que ela fica já bem.Barrada a minha entrada, restou-me pedir informações, sempre que tinha oportunidade. Ao fim de três horas, alguém veio dizer-me que a Clara ficaria internada, para observações. Aparentemente, tratava-se de uma intoxicação alimentar. O desmaio devera-se a uma descida de tensão arterial.Três horas depois. Três horas que me pareceram uma eternidade, um sufoco. Telefonei pelo menos quatro vezes ao Pedro que, sempre gentil, procurava tranquilizar-me.- Posso vê-la?, perguntei.- É da família?- Não, sou uma amiga.- Pois… só a família é que pode entrar. Ela está em observações. A senhora avisa-os ou avisamos nós?Fiquei transtornada, mas ainda consegui dizer numa voz sumida que eu os avisava. Depois do telefonema, abandonei o hospital, sem ver a Clara, sem saber se precisava de alguma coisa, sem ouvir a sua voz, sem ver os seus olhos, sem lhe tocar, senti-la perto, ao menos, para que se sentisse – me sentisse – menos só. Não sei o que pensei enquanto regressava a casa, mas lembro-me de ter esmurrado várias vezes o volante do carro, numa sensação de impotência que me enchia os olhos de lágrimas e a cabeça de pensamentos de revolta. A verdade é esta e só esta: aparentemente, não pude ver a Clara porque não sou da família dela. Mas, não sei porquê, tenho a certeza que se, em vez de um casal de lésbicas, estivesse em causa um casal de heterossexuais, os enfermeiros teriam permitido que a visse.Nos hospitais só existe um conceito de família, e esse conceito não comporta desvios. Familiares são apenas os pais, as mães, os avós, os irmãos, os tios… E os namorados, desde que heterossexuais. O conceito hospitalar de família é cego aos afectos, porque vive exclusivamente de uma partilha de apelidos, despido de sentimentos, de proximidades. Os pacientes não podem ter ao pé de si quem mais desejam, mas apenas quem os fazedores de regras impõem, baseados nos critérios que bem entendem, sejam eles tão ridículos e absurdos como o facto de pertencer à mesma família. Por muitas voltas que dê à cabeça, não consigo perceber porquê. Talvez porque só queira esquecer a aflição, o desespero, a raiva, o desalento e a preocupação que vivi naquelas horas, mas que não me deixam sempre que as revivo, ainda que só na minha cabeça. Será que os tais fazedores de leis já pararam para pensar nisto? E você?"
in Assumidamente
Fiquei, mais uma vez, de papo para o ar, a pensar na vida, depois de ler esta suposta "ficção"...
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7 comentários:
Estou zangadíssima. Por causa disso já só levas um beijo em vez de dois! :P
Sabes, ao reler este texto* fiquei profundamente triste... É uma tamanha desilusão ver que passados quase três anos estas palavras continuam tão actuais... :(
Um abraço!
* Ainda me lembro perfeitamente da noite em que o escrevi, sentada no sofá com a televisão sem som a passar o Frasier, se a memória não me atraiçoa... :)
mente assumida>| Penso que, infelizmente, esta história vai demorar o seu tempo a ser modificada...
Devias ter guardado um talão desse dia; sabes que a idade não perdoa e daqui a uns tempos podes não ser capaz de te lembrar da noite em que escreveste este texto... :p
Um abraço e um beijo(só um, já que perdi o direito a mais... :D )
nunca tinha pensado quão ridículo é os hospitais decidirem quem é que a pessoa hospitalizada quer ver.. como se só a família pudesse reconfortar o doente.. principalmente, em casos destes, quando a pessoa está consciente e pode decidir se quer ou não que a amiga/namorada/whoever a acompanhe! obrigado por partilhares esta estória connosco, mente assumida, e obrigado, marlene, por tê-la repescado e divulgado! :) um bem-haja!
tiago lila>|É sempre um prazer...
Por vezes passo pelo Assumidamente mas confesso que li este texto neste espaço.
É tocante, muito.
Mas vou contar-vos algo...eu que sou Anonyma para todos vós...
Na altura, fui parar ao hospital por uma série de cirscunstâncias. As dores eram pura e simplesmente lacinantes e o conceito de trepar paredes não me é totalmente desconhecido.
Alguns minutos depois Parte da Minha Alma estava lá...e entrou.
Disse ao que ía e entrou...
Acho que as pessoas estão tão habituadas a que lhes mintam que quando lhes dizem a verdade ficam sem saber o que dizer ou fazer!
Ou então, já não me podiam ouvir a uivar de dor...
Anonymous>| Fico feliz por saber disso...agora ficamos,como disseste, sem saber qual a razao para a terem deixado entrar... :)
Mas, qualquer que seja, ainda bem que não ficaste sozinha...
Bom, felismente nem todos/as que trabalham num hospital pensam assim, tendo um conceito de família restricto e moralista . Há ilhotas de bom senso mas, na realidade vai demorar muito a mudar de atitudes . è triste
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