quarta-feira, julho 18, 2007

Posso contar um segredo da minha vida?

Quando eu era pequenina havia muita música na minha casa. Eu sorria e dançava. Costumava ouvir o barulho da máquina de costura da minha mãe, que passava as roupas pela máquina com as suas mãos pequenas e hábeis. Ouvia a minha mãe cantarolar as músicas do meu pai, com a sua voz suave e delicada. Fazia roupas para as minhas bonecas...e eu, babada pelo talento da minha mãe, gabava as roupas de princesa que a minha mãe costurava, para as minhas amigas.
O meu pai costumava ficar na sala, rodeado pelos seus discos, dançava e cantava, recordando o passado em África. Costumava pegar em mim e começava o ritual: eu punha os meus pézinhos em cima dos dele e ele dançava e dançava...e eu sentia-me uma bailarina profissional, a flutuar, sem nunca me enganar nos passos...
O meu pai costumava segurar na minha mão, quando estavamos na rua, mostrando protecção, preocupação, amor. E o meu pai conhecia-me bem. Era quem me conhecia melhor.

Uma noite, dormia eu no quarto com os meus irmãos, porque tinha muito medo que o papão viesse assustar-me de noite. Algo me fez levantar, ensonada ainda, não sei se um barulho, não sei se um sonho...Levantei-me e vi uma imagem. A imagem da minha mãe. Não seria capaz de dizer que era a minha mãe ou se não estaria a sonhar não fosse essa forma humana, que me apareceu a meio da noite, a olhar para mim na porta, muito idêntica à imagem que eu conhecia. A minha mãe dormia com um lenço na cabeça, como tantas africanas fazem. Mas era um lenço bonito, de um verde clarinho, que "sobreviveu" durante muitos anos, apesar de não saber onde foi parar...E a tal imagem, que pensei ser a minha mãe, usava um lenço verde clarinho, igualzinho ao da minha mãe.
Pensei imediatamente que estaria a sonhar. Tentei focar a imagem, porque estava muito escuro e mesmo assim via uma espécie de sombra com o tal lenço na cabeça...estava já certa que não podia estar a sonhar quando resolvi chamar por ela: "Mãe!"
Mas "a minha mãe" não respondeu, ficando apenas parada na porta, virada de frente na minha direcção, com "o olhar" fixo em mim. E o meu fixo nela...chamei novamente: "Mãe!"...mas nada...
Convenci-me que estaria a sonhar ou que a minha mãe não queria que eu ficasse acordada...não sei o que pensei, sinceramente...voltei a deitar-me e adormeci...


Durante muito tempo não pensei nisto. Há uns anos atrás, lembrei-me deste acontecimento. E apercebi-me que bloqueei muitas memórias na minha vida. Não me lembro de nada do dia a seguir. Ou do dia anterior. Nem me lembro da melhor e maior festa de aniversário da minha infância...apenas olho para fotografias e construo falsas memórias do que vivi...
Mas lembro-me disto como se tivesse acontecido ontem. Parece que consigo ver ainda aquela figura igual à minha mãe, com o seu lenço verde na cabeça, que veio proteger o meu sono.
E lembro-me do que senti. E é com espanto que me apercebo que não tive medo. Eu que sempre fui hiper medricas com tudo, nunca fui sequer capaz de atravessar o corredor da casa, para chegar ao quarto sem acender todas as luzes que havia. Simplesmente não senti medo. Nenhum.
Durante muito tempo desejei ver essa imagem de novo, poder saber se é real o que me assusta pensar agora...
Nunca cheguei a saber se foi realmente a minha mãe que esteve ali, naquela noite, se ela seria sonâmbula ou se simplesmente eu estaria a sonhar. Penso que nunca saberei.
Talvez algo mais forte do que eu me obrigue a acreditar que a minha mãe vem ver-me todas as noites, com o seu lenço verde na cabeça, vigiar o meu sono ou que passava a mão na minha cabeça quando adormecia de cansaço, por antas lágrimas na almofada...
Às vezes penso se ela não estará sempre do meu lado, sem intervir mas acompanhando-me com a sua força cósmica...não sei se serão ilusões em que quero acreditar para que pese menos a sua ausência...
Talvez esteja comigo, talvez assista ao afastamento da nossa família, como tudo se desmoronou quando nos vimos privados da sua voz suave e das suas mãos pequenas. Talvez ela esteja aqui e veja como já não dou a mão ao meu pai na rua, como o afasto constantemente, como ele já não me conhece.
Acredito que ela também sinta falta da música na nossa casa, dos sábados de festa, da máquina de costura, dos vestidos de noiva e de princesa...

4 comentários:

Elza disse...

Ahh a infância tem cheiros sons e gostos ímpares!
Eu adoro lembrar deste tempo...
=]

Anónimo disse...

E é assim que os dias passam e me ensinas, entre tudo na vida, a ver mais um lado: não somos perfeitos, mas nessa realidade jaz a mais perfeita imperfeição.

Anónimo disse...

Come back mammyyyyyyyyyyy

Anónimo disse...

Ahh a infância tem cheiros sons e gostos ímpares!
Eu adoro lembrar deste tempo e gostei de ler oque vc escreveu n fique com vergonha



ASS: sua amiga
BJSS
XAUUUU